quarta-feira, 30 de abril de 2014

Viiiixiiiiiii

Um caso ocorrido mais ou menos assim...

Em uma aula no primeiro colegial, eis que estávamos discutindo a formação de discursos que se pretendem verdade em nossa sociedade. Naquela sala, a mais lotada da escola, dizia-se que pouco se poderia produzir, o que sempre contestei. De fato, o elevado número de alunos dificulta um atendimento mais individualizado, o que pode comprometer o bom desempenho dos mesmos. Contudo, nunca tive problema (exceto com a voz) em dar aulas ali, tanto que é uma das salas em que a discussão acaba sendo mais produtiva (o que contraria a lógica).
Nesta aula, eis que apareceu um representante de uma editora querendo vender uma espécie de "kit do vestibulando"...
O cara, bem vestido e bem adestrado (uma vez que decorou um texto grandessíssimo), falou por cerca de 10 minutos sem sequer tomar fôlego. Naquele discurso incisivo, o rapaz, querendo convencer a todo o custo, disse que todos podem entrar nas melhores faculdades do país, desde que realmente se empenhem (e comprem o seu produto, obviamente), que tudo dependia deles mesmos.
Juro que tentei, mas não pude ficar quieto. Indaguei-o: - "o senhor acredita mesmo que basta eles quererem e se empenharem que conseguirão passar?". O rapaz prontamente respondeu que sim. Aí propus a ele o seguinte raciocínio: - "imaginemos que todos os alunos do Djanira Velho resolvam prestar, por exemplo, medicina na USP Ribeirão, e que para alcançarem tal objetivo todos comprem o teu material e percam noites de sono neste processo de preparo. Ainda sim o senhor acha que todos podem conseguir, bastando eles quererem, comprarem este material e se empenharem?" Mais uma vez ele respondeu que sim. Prossegui: - "então, meu caro amigo, pensemos: nesta escola existem 4 terceiros colegiais, todos eles com uma média de 32 alunos, que se somados obteremos o número de 128 alunos. Ocorre que na Medicina da USP, por ano, são abertas apenas 100 vagas. Isso nos leva a crer que mesmo que todos se empenhem e comprem o teu material, no mínimo 28 destes não entrarão na faculdade, concordas comigo?". Ele respondeu vacilante: - "Sim". - "Então também há de concordar que o que o senhor está falando para eles a respeito de que basta querer e se empenhar que conseguirão entrar nas melhores faculdades não é bem uma verdade, mas apenas um discurso muito difundido que acaba por escamotear um sistema desigual e imputar a culpa nos próprios alunos, não é mesmo?". Ele ficou em silêncio.
Os alunos aguardaram uma resposta que não veio. Depois de alguns segundos de silêncio do rapaz e alguns risinhos contidos dos alunos ele resolveu retomar o discurso, desta vez falando do preço e condições de pagamento. Ao final deste discurso, eis a maior das pérolas, a que realmente valeu a pena escutar e que me motiva a continuar a dar aulas, pois mostra que ainda é possível ensinar a refletir:
Uma de minhas alunas levantou a mão e perguntou: - "moço, o senhor fez faculdade?". O rapaz, perplexo com a pergunta, deu uma engasgada e respondeu: - "não". A menina se lançou novamente contra ele e o indagou: - "se o kit que estás vendendo é tão bom assim, por que, então, o senhor não o usou para conseguir entrar em uma? Vai ver ele não funciona tão bem assim". A sala soltou um sonoro "vixiiiiii". O rapaz, constrangido, sem preparo para lidar com aquela situação, gaguejando, respondeu de forma quase incompreensível, entregou uns formulários, despediu-se com um sorriso amarelo e foi-se embora.
Com sua saída a sala inteira pôs-se a discutir o que ele tinha dito e a apontar as incoerências em seu discurso, pondo suas afirmativas em confronto com a realidade.
O melhor ensinamento que um Professor de humanas pode dar aos alunos é o "ensinar a pensar".
Ensinando-os a questionar certamente eles mesmos passarão a notar as incoerências que os cercam, e consequentemente poderão lutar para acabar com essas injustiças.
Não vou negar que senti um certo pesar pelo constrangimento do vendedor, mas tampouco negarei que foi muito bom ouvir um aluno questionando assim e não comprando um discurso passivamente. Creio que este episódio será um daqueles que jamais esquecerei.

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