quarta-feira, 9 de outubro de 2013

Discutindo o antropocentrismo na obra "A criação do homem", de Michelangelo.


Os séculos XIV e XV representaram a quebra de um paradigma pautado na religiosidade que há muito tempo imperava na Europa. Este período representou uma mudança tão grande no pensar e no representar o mundo, que os Iluministas (que se diziam os portadores da verdade) reconheceram nos homens que nele viveram os seus predecessores. Denominaram-no, pois, Renascimento.
Segundo os Iluministas, durante estes séculos o homem (ou parte deles) conseguiu se libertar do “obscurantismo” da Igreja Católica, que se dizendo a intermediadora entre Deus e o mundo, teria o monopólio da verdade divina e de todo conhecimento por consequência. Embora o Renascimento seja normalmente estudado no campo das artes, sua influência se estendeu por uma gama enorme de áreas. A própria chegada do europeu à América aponta para a influência renascentista para além da arte.
Enfim, o Renascimento esteve, a grosso modo, pautado no estilo greco-romano de arte e técnica (que a Igreja “não apreciava”, por isso a volta a este estilo foi denominada Renascimento), um pensar e fazer o mundo com base em conhecimentos empíricos, a partir das experiências humanas, um antropocentrismo, que a partir daí buscava a perfeição das formas, não somente a mensagem (principalmente religiosa) que era o objetivo da arte sacra.
Vale salientar que as precursoras deste “renascimento” foram as cidades-estado italianas, que durante a Idade Média, dominaram o comércio europeu, dada sua posição geográfica privilegiada no Mar Mediterrâneo, que as colocavam no meio do caminho entre o Oriente Próximo e o interior do continente. Cidades comerciais que eram, tinham um grande fluxo de pessoas de origens múltiplas, o que facilita as trocas culturais, elemento indispensável para a quebra de paradigmas. É justamente neste contexto e nessas cidades italianas que se insere Michelangelo, de quem a autora Léa Sá analisa algumas obras.
Segundo a autora, “Arquiteto, escultor, pintor, poeta e engenheiro, Michelangelo Buonarroti [...] não conhecia limitações” (SÁ, 2001, p. 51). O artista fora convocado pelo Papa Júlio II para pintar a abóboda da Capela Sistina, que ainda estava virgem:

O artista tentou esquivar-se dessa encomenda; no entanto, o Papa se manteve irredutível.
Começou, então, Michelangelo a elaborar um modesto esquema [...] e a contratar ajudantes [...] Repentinamente, fechou-se na capela, não deixou ninguém se acercar dele e começou a trabalhar sozinho num plano que assombrou o mundo desde o instante em que foi revelado. (SÁ, 2001, p. 51-52).

“A criação do homem” é apenas uma das imagens contidas no teto da Capela Sistina, sendo uma das mais conhecidas entre elas. Segundo Sá, muitos outros artistas já haviam pintado Adão no momento da criação, “mas nenhum deles se aproximara sequer de expressar a grandeza do mistério da Criação com tamanha simplicidade e força”(SÁ, 2001, p. 53) como Michelangelo.
Nesta obra ficam claros os elementos renascentistas, pois a análise da autora aponta para o fato de que “Adão [...] está deitado no chão, exibindo toda a beleza e vigor que condizem com o primeiro homem” (SÁ, 2001, p. 53). Beleza e vigor, ideais greco-romanos que voltaram a fazer parte da arte renascentista. A perfeição das formas é um marco do renascimento, seja nas esculturas, seja nas pinturas ou em outro campo.
A autora aponta ainda que a pintura retrata a grandeza de Deus no ato da criação, dando vida a mais bela de suas obras: Adão. Sá, ao se apropriar da obra de Michelangelo, representa a criação desta forma:

Desde a criação de Adão, Michelangelo coloca em evidência a transparência mítica do divino e sua irremediável perda, a ausência, a distância que, eternamente e desde a origem, separa a criatura do Criador, o homem da Criação.
Há um espaço entre o plano do Criador e o plano da criatura. E é justamente neste espaço simbólico, metafórico, que o dedo indicador da mão direita do Criador toca a mão esquerda da criatura. A mão inerte, sem vida, de um ser que contempla o poder, a energia da transformação. SÁ, 2001, p. 55)

Segundo a autora, a obra de Michelangelo tem no ato do “quase toque” entre Deus e o homem seu clímax, pois o gênio do artista conseguira, por meio de um “não toque”, representar a separação, a distância existente “eternamente e desde a origem” entre Criador e criatura. Embora Adão seja a imagem e semelhança de Deus, e consequentemente tenha suas formas retratadas pelo pintor com aparente perfeição, os planos em cada um está apontam para as diferenças entre ambos. Segundo a apropriação que Sá têm da obra, o ponto central da mesma seria o quase toque entre Deus e o homem, e a mensagem contida nisso seria a magnanimidade do Criador, que envolto por anjos, ao dar vida a sua criação, é contemplado por ela.
Discordando de Léa Sá, ouso também apropriar-me de tal obra, e apontar qual leitura faço da mesma.
A autora vê na obra a contemplação de Adão ao seu criador. Contudo, pautado em algumas evidências encontradas no contexto histórico e no próprio texto de Léa Sá, creio que Michelangelo possa ter passado outra mensagem no Afresco.
Se pararmos para pensar que o renascimento (embora o termo tenha sido usado não pelos contemporâneos, mas tenha sido dado pelos Iluministas séculos depois) tinha por principal característica o antropocentrismo, a tentativa do homem conhecer o mundo por si mesmo, o que necessariamente significa quebrar com algumas “verdades divinas”, poderemos fazer uma releitura da obra tendo o homem como centro e emissor da mensagem, não mero contemplador da divindade.
Atendo-se ao texto de Sá, veremos que a mesma, ao descrever parte dos talentos de Michelangelo, afirma que ele era versado em várias artes, o que aponta para um indivíduo que tinha no conhecimento empírico uma satisfação e uma forma de pensar. Era ele quem conhecia e fazia por si mesmo, sem esperar, necessariamente, uma luz divina que lhe revelasse o conhecimento.
Da mesma forma, encontramos no texto referência a uma certa autonomia do artista, evidenciada em uma possível resistência ao Papa, haja visto que segundo a autora ele tentara recusar o serviço, sendo dissuadido pelo Papa Júlio II a aceitá-lo. Essa postura de negar ao Papa (ou de tentar negar) demonstra seu gênio extremamente excêntrico e humanista, por não aceitar prontamente o pedido do sumo pontífice, tentando fazer valer a vontade do homem face ao representante de Deus na Terra.
Se o meio não é determinante das ações do indivíduo, ele é condicionante. Todavia, dentro das limitações impostas pelo lugar social do indivíduo, o mesmo pode apropriar-se das representações e modificá-las. Michelangelo, não podendo se negar a pintar a Capela para o Papa, mesmo frustrado o fizera. Todavia, valendo-se de estratégias que fogem às determinações impostas, se apropriara de passagens bíblicas e a representara segundo uma lógica humanista.
Creio que Michelangelo possa ter tentado passar uma mensagem puramente antropocêntrica na citada obra. Ou seja, a obra tem o homem como centro, e não Deus. O homem (não creio que esteja sem vida como aponta a autora) está sentado de uma maneira muito cômoda, muito displicente para quem está contemplando em êxtase a magnitude de seu divino Criador. Embora Sá aponte que na obra eles não se tocam, creio que a mensagem passada não seja a diferença dos mundos do Criador e da criatura que impede esse toque, mas representa a separação entre o homem iluminista, racional, e a Igreja. Ao contrário de Adão, que parece não fazer questão que isso ocorra. Deus, parece estar se esforçando muito para poder tocar em sua criação. Parece um esforço motivado por uma paixão humana. Os anjos ao verem Deus nessa situação, tentam segurá-lo e puxá-lo novamente para o seu plano, fazendo com que recobre a consciência.
Neste releitura, talvez leviana, Michelangelo não aponta para a criação em si, mas para o homem renascentista, que vê na divindade algo comum, sendo ele mesmo, o homem, o agente do saber e do fazer, sendo desnecessário correr atrás de Deus. Ao contrário disso, Deus representaria a própria Igreja, que “sendo a portadora dos dons divinos” não consegue fazer obra de grande expressão, tendo de correr atrás dos homens (atrás dele, no caso) para a realização de algo. Neste caso, o Adão representaria o próprio Michelangelo, que estava indiferente ao trabalho dado pelo Papa a ponto de tê-lo recusado de início, tendo, posteriormente, de ser curvar aos caprichos do Papa.
Oras, não se pode negar que os artistas do Renascimento ainda viviam em um mundo cuja religiosidade era extremamente importante, tampouco se pode negar aos indivíduos sua capacidade inventiva, de criar maneiras novas de interpretar e viver o mundo a sua volta. Se os mecenas podiam se colocar (serem pintados) em cenas sacras, os artistas poderiam também criar uma obra com sentido por vezes distinto do esperado, ainda mais frustrado por ter de aceitar um serviço que não queria. Em plena especulação como me acho, defendendo uma “teoria da conspiração”, por que Michelangelo escolhera se isolar e pintar uma obra de tal monta sozinho? Não seria acaso pelo fato de estar pintando algo distinto do esperado por uma certa vingança, necessitando de um sigilo que somente ele poderia guardar, afim de não ser atrapalhado em seu intento?
Não sendo possível apreender as verdadeiras intenções do artista, creio que ficará a indagação sem resposta, mas deixo patente minha discordância ao sentido atribuído pelos grandes estudiosos da arte.

BIBLIOGRAFIA:

CHARTIER, R. O mundo como representação. Estudos Avançados. São Paulo: USP, 11(5), 1991, p173-191.

SÁ, L. S. B. de. O dito e o escrito em três cenas da Capela Sistina: A Criação do Mundo, A Criação do Homem e a Criação de Eva, In_SALZEDAS, N. A. M. Uma leitura do ver: do visível ao legível. São Paulo: Arte e Ciência Villipress, 2001, p. 51-58. disponível em: