Os séculos XIV e XV representaram a quebra de um paradigma pautado
na religiosidade que há muito tempo imperava na Europa. Este período
representou uma mudança tão grande no pensar e no representar o
mundo, que os Iluministas (que se diziam os portadores da verdade)
reconheceram nos homens que nele viveram os seus predecessores.
Denominaram-no, pois, Renascimento.
Segundo os Iluministas, durante estes séculos o homem (ou parte
deles) conseguiu se libertar do “obscurantismo” da Igreja
Católica, que se dizendo a intermediadora entre Deus e o mundo,
teria o monopólio da verdade divina e de todo conhecimento por
consequência. Embora o Renascimento seja normalmente estudado no
campo das artes, sua influência se estendeu por uma gama enorme de
áreas. A própria chegada do europeu à América aponta para a
influência renascentista para além da arte.
Enfim, o Renascimento esteve, a grosso modo, pautado no estilo
greco-romano de arte e técnica (que a Igreja “não apreciava”,
por isso a volta a este estilo foi denominada Renascimento), um
pensar e fazer o mundo com base em conhecimentos empíricos, a partir
das experiências humanas, um antropocentrismo, que a partir daí
buscava a perfeição das formas, não somente a mensagem
(principalmente religiosa) que era o objetivo da arte sacra.
Vale salientar que as precursoras deste “renascimento” foram as
cidades-estado italianas, que durante a Idade Média, dominaram o
comércio europeu, dada sua posição geográfica privilegiada no Mar
Mediterrâneo, que as colocavam no meio do caminho entre o Oriente
Próximo e o interior do continente. Cidades comerciais que eram,
tinham um grande fluxo de pessoas de origens múltiplas, o que
facilita as trocas culturais, elemento indispensável para a quebra
de paradigmas. É justamente neste contexto e nessas cidades
italianas que se insere Michelangelo, de quem a autora Léa Sá
analisa algumas obras.
Segundo a autora, “Arquiteto, escultor, pintor, poeta e engenheiro,
Michelangelo Buonarroti [...] não conhecia limitações” (SÁ,
2001, p. 51). O artista fora convocado pelo Papa Júlio II para
pintar a abóboda da Capela Sistina, que ainda estava virgem:
O artista tentou esquivar-se
dessa encomenda; no entanto, o Papa se manteve irredutível.
Começou, então, Michelangelo a
elaborar um modesto esquema [...] e a contratar ajudantes [...]
Repentinamente, fechou-se na capela, não deixou ninguém se acercar
dele e começou a trabalhar sozinho num plano que assombrou o mundo
desde o instante em que foi revelado. (SÁ, 2001, p. 51-52).
“A criação do homem” é apenas uma das imagens contidas no teto
da Capela Sistina, sendo uma das mais conhecidas entre elas. Segundo
Sá, muitos outros artistas já haviam pintado Adão no momento da
criação, “mas nenhum deles se aproximara sequer de expressar a
grandeza do mistério da Criação com tamanha simplicidade e
força”(SÁ, 2001, p. 53) como Michelangelo.
Nesta obra ficam claros os elementos renascentistas, pois a análise
da autora aponta para o fato de que “Adão [...] está deitado no
chão, exibindo toda a beleza e vigor que condizem com o primeiro
homem” (SÁ, 2001, p. 53). Beleza e vigor, ideais greco-romanos que
voltaram a fazer parte da arte renascentista. A perfeição das
formas é um marco do renascimento, seja nas esculturas, seja nas
pinturas ou em outro campo.
A autora aponta ainda que a pintura retrata a grandeza de Deus no ato
da criação, dando vida a mais bela de suas obras: Adão. Sá, ao se
apropriar da obra de Michelangelo, representa a criação desta
forma:
Desde a criação de Adão,
Michelangelo coloca em evidência a transparência mítica do divino
e sua irremediável perda, a ausência, a distância que, eternamente
e desde a origem, separa a criatura do Criador, o homem da Criação.
Há um espaço entre o plano do
Criador e o plano da criatura. E é justamente neste espaço
simbólico, metafórico, que o dedo indicador da mão direita do
Criador toca a mão esquerda da criatura. A mão inerte, sem vida, de
um ser que contempla o poder, a energia da transformação. SÁ,
2001, p. 55)
Segundo a autora, a obra de Michelangelo tem no ato do “quase
toque” entre Deus e o homem seu clímax, pois o gênio do artista
conseguira, por meio de um “não toque”, representar a separação,
a distância existente “eternamente e desde a origem” entre
Criador e criatura. Embora Adão seja a imagem e semelhança de Deus,
e consequentemente tenha suas formas retratadas pelo pintor com
aparente perfeição, os planos em cada um está apontam para as
diferenças entre ambos. Segundo a apropriação que Sá têm da
obra, o ponto central da mesma seria o quase toque entre Deus e o
homem, e a mensagem contida nisso seria a magnanimidade do Criador,
que envolto por anjos, ao dar vida a sua criação, é contemplado
por ela.
Discordando de Léa Sá, ouso também apropriar-me de tal obra, e
apontar qual leitura faço da mesma.
A autora vê na obra a contemplação de Adão ao seu criador.
Contudo, pautado em algumas evidências encontradas no contexto
histórico e no próprio texto de Léa Sá, creio que Michelangelo
possa ter passado outra mensagem no Afresco.
Se pararmos para pensar que o renascimento (embora o termo tenha sido
usado não pelos contemporâneos, mas tenha sido dado pelos
Iluministas séculos depois) tinha por principal característica o
antropocentrismo, a tentativa do homem conhecer o mundo por si mesmo,
o que necessariamente significa quebrar com algumas “verdades
divinas”, poderemos fazer uma releitura da obra tendo o homem
como centro e emissor da mensagem, não mero contemplador da
divindade.
Atendo-se ao texto de Sá, veremos que a mesma, ao descrever parte
dos talentos de Michelangelo, afirma que ele era versado em várias
artes, o que aponta para um indivíduo que tinha no conhecimento
empírico uma satisfação e uma forma de pensar. Era ele quem
conhecia e fazia por si mesmo, sem esperar, necessariamente, uma luz
divina que lhe revelasse o conhecimento.
Da mesma forma, encontramos no texto referência a uma certa
autonomia do artista, evidenciada em uma possível resistência ao
Papa, haja visto que segundo a autora ele tentara recusar o serviço,
sendo dissuadido pelo Papa Júlio II a aceitá-lo. Essa postura de
negar ao Papa (ou de tentar negar) demonstra seu gênio extremamente
excêntrico e humanista, por não aceitar prontamente o pedido do
sumo pontífice, tentando fazer valer a vontade do homem face ao
representante de Deus na Terra.
Se o meio não é determinante das ações do indivíduo, ele é
condicionante. Todavia, dentro das limitações impostas pelo lugar
social do indivíduo, o mesmo pode apropriar-se das representações
e modificá-las. Michelangelo, não podendo se negar a pintar a
Capela para o Papa, mesmo frustrado o fizera. Todavia, valendo-se de
estratégias que fogem às determinações impostas, se apropriara de
passagens bíblicas e a representara segundo uma lógica humanista.
Creio que Michelangelo possa ter tentado passar uma mensagem
puramente antropocêntrica na citada obra. Ou seja, a obra tem o
homem como centro, e não Deus. O homem (não creio que esteja sem
vida como aponta a autora) está sentado de uma maneira muito cômoda,
muito displicente para quem está contemplando em êxtase a magnitude
de seu divino Criador. Embora Sá aponte que na obra eles não se
tocam, creio que a mensagem passada não seja a diferença dos mundos
do Criador e da criatura que impede esse toque, mas representa a
separação entre o homem iluminista, racional, e a Igreja. Ao
contrário de Adão, que parece não fazer questão que isso ocorra.
Deus, parece estar se esforçando muito para poder tocar em sua
criação. Parece um esforço motivado por uma paixão humana. Os
anjos ao verem Deus nessa situação, tentam segurá-lo e puxá-lo
novamente para o seu plano, fazendo com que recobre a consciência.
Neste releitura, talvez leviana, Michelangelo não aponta para a
criação em si, mas para o homem renascentista, que vê na divindade
algo comum, sendo ele mesmo, o homem, o agente do saber e do fazer,
sendo desnecessário correr atrás de Deus. Ao contrário disso, Deus
representaria a própria Igreja, que “sendo a portadora dos dons
divinos” não consegue fazer obra de grande expressão, tendo de
correr atrás dos homens (atrás dele, no caso) para a realização
de algo. Neste caso, o Adão representaria o próprio Michelangelo,
que estava indiferente ao trabalho dado pelo Papa a ponto de tê-lo
recusado de início, tendo, posteriormente, de ser curvar aos
caprichos do Papa.
Oras, não se pode negar que os artistas do Renascimento ainda viviam
em um mundo cuja religiosidade era extremamente importante, tampouco
se pode negar aos indivíduos sua capacidade inventiva, de criar maneiras novas de interpretar e viver o mundo a sua volta. Se os mecenas
podiam se colocar (serem pintados) em cenas sacras, os artistas
poderiam também criar uma obra com sentido por vezes distinto do
esperado, ainda mais frustrado por ter de aceitar um serviço que não
queria. Em plena especulação como me acho, defendendo uma “teoria
da conspiração”, por que Michelangelo escolhera se isolar e
pintar uma obra de tal monta sozinho? Não seria acaso pelo fato de
estar pintando algo distinto do esperado por uma certa vingança,
necessitando de um sigilo que somente ele poderia guardar, afim de
não ser atrapalhado em seu intento?
Não sendo possível apreender as verdadeiras intenções do artista,
creio que ficará a indagação sem resposta, mas deixo patente minha
discordância ao sentido atribuído pelos grandes estudiosos da arte.
BIBLIOGRAFIA:
CHARTIER,
R. O mundo como
representação.
Estudos Avançados.
São Paulo: USP, 11(5), 1991, p173-191.
SÁ,
L. S. B. de. O dito e
o escrito em três
cenas da Capela
Sistina: A
Criação
do Mundo,
A
Criação
do Homem
e a Criação
de Eva,
In_SALZEDAS, N. A. M.
Uma
leitura do ver: do visível ao legível. São
Paulo: Arte
e Ciência
Villipress,
2001, p. 51-58. disponível em:
http://books.google.com.br/books?hl=pt-PT&lr=lang_pt&id=oQCG1eD1pw8C&oi=fnd&pg=PA51&dq=michelangelo+a+cria%C3%A7%C3%A3o+do+homem&ots=xRmVP5nrTS&sig=MLyWshg3WQ2dfhK3Zdlf-lGZq0s#v=onepage&q=michelangelo%20a%20cria%C3%A7%C3%A3o%20do%20homem&f=false,
acessado
em 30/09/2013
Hoje a humanidade não vÊ tanta distancia entre o Criador e a criatura,Jesus aproxima-nos do Criador como Pai da humanidade! Somos todos filhos do mesmo Criador "DEUS"
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